Confissões noturnas
Na primeira vez eu que ouvi Canteiros eu tinha 16 anos e um caso muito grave de anorexia nervosa. A letra da música caiu como uma luva na minha melancolia. Era de noite e eu estava sentada no banco do carro da minha tia, vendo a cidade passar por mim como um borrão. “Que música linha”, eu disse, enquanto anotava uma parte do refrão em um bloco de notas no meu celular. A textura do mundo era então diferente. Perdida aqui dentro, uma noite permanente descendeu sobre mim. Sob o véu da minha doença, minha percepção do mundo mudou, este se derretia em torno de mim, tornava-se translúcido. Não muito depois daquele dia, eu pedi à minha mãe para que me internassem.
Talvez por estar perto da morrer eu comecei a ver a vida como um continuum. É difícil estar 100% vivo, e naquela época eu só estava viva por um fio. Eu me agarrei àquele fio, não sei bem o porquê, afinal eu gostava da paz que eu sentia quando eu não comia. Não comer havia se tornado uma droga para mim, uma forma de acalmar a minha alma. Mas algo me impelia à vida. Eu ainda tinha que conhecer e ser conhecida, ler e ser lida, pisar em lugares que eu ainda não havia explorado. Deixar minha marca no mundo, ou, ainda, viver sem deixar rastro, enquanto o mundo cravava sua marca em mim.
No entanto, quanto mais eu me movia em direção à vida no continuum Vida-Morte, mais desconfortável eu me sentia. Meu mundo translúcido tomava forma, se enrijecia, as cores ficavam mais fortes e vibrantes, o sons se tornavam mais altos e estridentes. A anorexia não foi fácil e me recuperar tampouco, mas difícil mesmo é viver.
Difícil é dormir todos os dias ciente das injustiças, dos sofrimentos, da monotonia, e acordar, e se levantar, e partir para um novo dia de disfunção cognitiva. Difícil é sustentar o peso de si próprio ao caminhar pelo mundo, e sustentar o peso do mundo ao caminhar por si próprio.
A anorexia foi minha resposta à vida e, sem ela, eu fiquei parcialmente sem respostas, jogada à maré de acontecimentos, tomando caixotes sem parar. Para ser honesta comigo mesma, às vezes eu ainda me pergunto onde está meu transtorno alimentar para me salvar de viver.
sobre sentir
Ao longo do tempo, eu recebi diversas mensagens sobre como a minha vida deveria ser. Eu deveria fazer algo que desse muito dinheiro, deveria ser bem-sucedida, talvez famosa e com certeza reconhecida. Eu deveria trabalhar incessantemente, amar a correria, ser organizada e disciplinada.
Mas, se tudo isso é tão certo, por que me faz sentir tão mal? Muitas perguntas ficam sem resposta.
Ao contrário de tudo que deveria ser, eu quero perder meu tempo olhando para a lua, cheirando flores, respirando fundo. Ao contrário de tudo que deveria ser, eu me sinto cansada, esgotada, sem ânimo e sem brilho. Ao contrário de tudo o que deveria ser, na maior parte do tempo eu só queria deitar no chão e sentir a beleza e o peso de estar viva. Ao contrário de tudo que deveria ser, eu não sinto vontade de correr ou competir ou dar tudo de mim para algo que não me interessa.
Me disseram que a vida era sobre o que quero. Eu descobri que, na verdade, a vida é sobre o que sinto.
Ainda bem, porque sou dada a me perder em quereres, e no sentimento eu volto ao meu centro.
o desafio da vida
Talvez seja esse o maior desafio da vida
viver em estado de entrega mesmo quando dói
Deixar o vento secar as lágrimas
Mover-se pelo amor, em vez de pela dor
Mesmo quando a dor se conterce dentro de mim
Pedindo pra morrer
Pedindo pra acabar
Pedindo pelo fim
Por que o que é a morte senão proteção da vida?
Dessa vida que escancara as feridas abertas do mundo
Dessa vida que é parte amor e parte dor
Parte coragem e parte medo
Parte afeto e parte solidão
Talvez solidão demais
A solidão de tudo aquilo que não foi e que portanto não existe
e que portanto vive sozinho no não existir
Talvez o maior desafio da vida seja, ainda
A coragem de caminhar pela não existência das partes que não foram felizes
Das partes que se deixaram morrer
Das partes que foram deixadas pra morrer
Talvez a vida seja um eterno resgate da morte
E a braveza seja, na verdade
Aquela de guiar-se pelo pouco que se sabe
Pelo muito que não se sabe
Consciente de não haver eixo nem beira nem direção
Nem alento
Ou será que há?
Talvez seja esse o maior desafio da vida
Acreditar
Acreditar no movimento do mundo
E que a vertigem é só outro ângulo da felicidade
E que a dor é proteção da felicidade nascente
Não se enrijeça – disse a vida
Deixe que a dor doa até que ela termine de doer
E se alguém picar a ferida deixe que a ferida grite
E se alguém lavá-la, chore de alívio
E se umndia ela sarar, corra de emoção
E se nunca sarar, então lembre-se de que a dor estava ali para fazer companhia
Fazer companhia a tudo aquilo que vive sozinho no não existir.
Eu tenho medo do escuro
Desse breu de mim mesma que me ataca
Do vazio
Do vazio da noite que eu posso encher de medos
Dos medos que me fazem companhia
Nessa minha não existência
Ausência de mim
Ausência de todos
Ausência de tudo
Ausência de tradução
Talvez a braveza da vida seja continuar vivendo mesmo quando não há tradução
Quando as palavras se perdem
Quando não existem pontes
Ilhada sem ilha
Eu pedi ao vento que secasse minhas lágrimas
Ele disse que não
Que ele ia na verdade carregá-las
Para orvalhar o escuro da promessa do amanhã
Eu pedi ao sol que iluminasse essa noite
Ele disse que não
Que eu já fazia isso com a minha luz
Eu disse bobagem
Ele disse que também não enxerga a si mesmo
Eu pedi, finalmente, ao mar
Pedi que ele me levasse embora daqui
Quee afogasse em uma de suas ondas
Ele disse que não
Que eu já quase me afogo nas minhas ondas internas
E que um dia eu aprendo a flutuar
Talvez seja esse o maior desafio da vida
Flutuar.
Morgana Lino.
incêndios
Às vezes me faltam palavras,
parece que o ar se esgotou dentro de mim, tornou-se rarefeito
queimou num desses incêndios
que cortam o meu peito
enchendo minha cabeça de fumaça
e meus olhos de lágrimas.
eu deixo meu fogo interno queimar minha vida,
queimar minha pele,
queimar a vegetação que insiste em crescer no meu coração.
Mas eu queimo calada.
Viver também é estar quieta,
longe dos gritos
perto dos murmúrios
longe da loucura do mundo
perto da loucura de si próprio
A fumaça desses incêndios se transformou em nevoeiro
na minha cabeça
eu não posso ver nada, mas o nada pode me ver
eu procuro a inspiração, tateando
e vou chegando perto dos limites interiores do abismo
lá encontro um vazio profundo
meu vazio
que me olha nos olhos, e pergunta
“Quem, afinal, é você?”
O pior de tudo é que eu não sei responder.
Quem, afinal, sou eu?
talvez eu seja o nada e o vazio e o abismo
talvez eu seja o nevoeiro e a fumaça e o ar rarefeito
talvez eu seja as próprias palavras que eu já não quero mais dizer
porque falar não leva a nada
Vou repetir:
porque falar não leva a nada.
Mas se eu me concentrar,
me concentrar mesmo,
eu me aninho nesse vazio
e quando abro os olhos,
eu posso as cores do mundo inteiro,
translúcidas em contato com toda essa névoa.
Talvez eu seja isso,
uma mistura de cores translúcidas.
Dizem translúcido tudo aquilo que deixa passar a luz,
e aqui está a justificativa do meu vazio:
Eu preciso de espaço para deixar a luz passar.
10/09/2023
Incêndios,
Morgana.
saudade
Nos últimos tempos eu vivi um período de luto. Senti como se a vida estivesse passando em câmera lenta. Eu trabalhei em câmera lenta, comi em câmera lenta, amei em câmera lenta. Porque a minha vida, ou o meu sentimento de viver, de repente caiu em areia movediça e tudo, tudo, começou a se imobilizar dentro de mim, sendo mastigado, em silêncio, pela existência.
Essa história começa num lugar com cara de contos de fadas onde eu conheci o filhote que mudou a minha vida. Ele nasceu num lugar chamado Linda Serra dos Topázios. Parece poético demais, mas às vezes a realidade consegue ser melhor que a ficção. Eu estava passeando pela Linda Serra dos Topázios quando o vi, sozinho, tremendo de frio, deixado para morrer. Tão pequeno, tão frágil, tão indefeso. Eu não tive dúvidas de que cuidaria dele. Enrolei o pequenino em uma toalha e levei comigo.
Eu imaginei ele ficando grande, bonito. Eu imaginei que eu fosse poder soltá-lo novamente na natureza. Eu replanejei todas as viagens que eu tinha marcadas, decidi não usar todas as passagens que já estavam compradas, para cuidar dele. Na segunda-feira, quando tive que trabalhar, não pude evitar chorar por grande parte do dia, porque como a sociedade poderia querer, de certa forma exigir, que eu ficasse longe de um filhote? Eu chorei de manhã, eu chorei no almoço, chorei em casa e chorei em público, chorei antes e depois de vê-lo, eu chorei à noite, e chorei principalmente por perceber que ele não estava bem. “Nenhum bebê, não importa de qual espécie, merece ficar sozinho no mundo”, eu pensei.
Naquela semana eu fiz de tudo: mudei meus horários do trabalho para poder alimentá-lo mais vezes ao dia, comprei bem mais papinha do que o necessário e, finalmente, o internei numa clínica veterinária especializada. Todo mundo me falava que esses filhotinhos, quando perdem a mãe, dificilmente sobrevivem. Mas eu queria acreditar que ele teria uma vida longa e feliz, e acreditei.
Mas não importa o que eu fizesse, o quanto eu quisesse, o quanto eu amasse, nada disso evitou que ele morresse.
As coisas que tentamos proteger parecem ser as coisas que se vão primeiro.
E por mais que ele tenha ficado comigo por tão pouco tempo, a morte dele escancarou o vazio no centro do meu peito. E por um tempo os ventos sopraram selvagens. E choveu dentro de mim. Choveu fora de mim. Choveu dos meus olhos pra fora. E essa chuva gelada, doída, lavou a minha alma. E eu repensei. Por causa dele eu repensei tantas das minhas escolhas. Por causa dele eu mudei. Não posso dizer ao certo como, mas sei que já não sou mais a mesma que eu costumava ser.