Eu acho que herdei mais da minha mãe do que costumo admitir. Pra começar, ela colocou meu nome de Morgana por causa da atmosfera de magia dos contos de  fada. O nome caiu como uma luva: eu sempre vivi entre os mundos, acreditando fielmente em todas  as coisas. Ela me contou que todos os seres fantásticos que vivem nos livros existem de verdade, ainda que não possamos vê-los. Uma das minhas grandes paixões quando criança era colher flores pela vizinhança, torcendo pra ver uma fada no processo ou encontrar um de seus tesouros perdidos. As crianças maiores e mais céticas que moravam na minha rua diziam que essas coisas não existiam, eu respondia que existiam sim, “minha mãe disse que existem”. Nós sempre acabávamos nessas discussões de que mãe sabia mais (a minha, é claro). Eu acreditava que meus brinquedos acordavam quando eu dormia e que sereias moravam no lago Paranoá. Na única vez em que me lembro de alguém caçoando do meu nome, minha mãe disse que ele era diferente e que eu não deveria querer ser igual a todo mundo de qualquer jeito. Eu carreguei essas palavras no meu coração para sempre, e amei meu nome mais do que qualquer coisa.
 

Minha mãe tem essa enorme fé em algo maior. Ela me fez ir à igreja  aos domingos, o que eu odiava, e me contou que nós deveríamos rezar todas as noites. Eu rezava pelos animais. Todo santo dia. Todas as vezes em que vejo um animal de rua, a minha antiga oração aparece firme e clara na minha mente. No final das contas, a fé da minha mãe se infiltrou nos poros da minha rebeldia, e se transformou em uma fé profunda na vida, no universo e em mim mesma. No fim, minha mãe, uma católica que vai à missa aos domingos, manejou criar uma filha chamada Morgana, que acredita que todas as coisas existem, ainda que em dimensões sobrepostas à nossa. 

 

É claro, nem tudo são flores. Ser filha única de um de seus pais  pode ser uma experiência sufocante. Eu aprendi a manter minha mãe a pelo menos um braço de distância. Eu aprendi a manter o mundo inteiro a pelo menos um braço de distância. Minha mãe (e meu pai também, diga-se de passagem), estão embrenhados nessa neblina neptuniana. Não tem contornos nítidos, parecem mais notas musicais do que pessoas de carne e osso. Apesar de não serem artistas por profissão, eu cheguei à conclusão de que são artistas de alma. Especialmente minha mãe. Ela não está interessada em pagar contas ou ser bem sucedida. Eu não sei no que ela está interessada, pra dizer a verdade, porque ela nunca contou.

 

Esse é o paradoxo de escrever sobre os meus pais: eles são incógnitas em si mesmos e tudo que sei sobre eles são coisas que sei sobre mim. Eu acabei crescendo confusa em uma outra dimensão, porque ambos os meus pais eram o Gato de Cheshire. Ambos pareciam completamente intangíveis. Eu não sabia se isso era um fator de personalidade ou pura maldade. Por vezes, achei que fosse maldade, que eu fosse um fantoche pra eles, que eu deveria correr o mais rápido que eu pudesse em direção à liberdade. Escapistas, sua inabilidade de existir no mundo era dolorosa de assistir. Eles não estavam lá e então estavam e então não estavam. Eles se perdiam constantemente em seus mundos internos. 

 

Eu só queria que eles fossem mais sólidos e confiáveis, como os pais dos meus amigos pareciam ser. Sua intangibilidade foi muito difícil de perdoar. Eu sentia uma insegurança muito grande quando criança, achava que se algo acontecesse meus pais não conseguiriam lidar, então eu tentei me tornar o mais responsável possível. Mas quando olho de volta pra minha infância eu vejo uma porção de coisas que eu não podia ver à época.  Como certas coisas foram dolorosas, como as pessoas que me cercavam estavam cobertas de hematomas. Alimentando minha imaginação, minha mãe conseguiu me isolar disso, e meus traumas acabaram sendo menos brutais do que poderiam ter sido. Eu vivia em uma bola de magia, coberta em pó de pirlimpimpim. 

 

Mas eu sabia que algo não parecia certo. Que meu mundo mágico era perpetuamente ameaçado pelo desespero dos meus pais com o mundo real. Eu achava que se eu pudesse torná-los mais tangíveis, todos seriam felizes. Que se eles fossem mais sólidos as contas seriam pagas no fim do mês, meu pai apareceria mais vezes, os corredores deixariam de cheirar a álcool. É claro, eles nunca se solidificaram. Perdoá-los envolveu entender que eles não nasceram meus pais, que suas identidades não estão vinculadas à minha.

 

Mas mais difícil do que perdoá-los, foi me perdoar. Porque, como não podia deixar de ser, eu nasci tão intangível quanto eles. Todas as tentativas de me agarrar a uma falsa imagem e me tornar sólida me dilaceraram, porque eu nunca fui feita pra ser. As  pessoas quase têm que me pegar pela mão e me trazer de volta para realidade. Eu tenho dificuldades para me concentrar porque há muitas histórias na minha cabeça implorando para serem contadas, porque a luz entrando pela janela é algo muito bonito de se admirar, porque nossa “eu preciso sentir essa música”. Eu tento me balancear, mas no final do dia ainda sou a pessoa menos balanceada que eu conheço. E no final do dia eu ainda amo isso, porque me permite apreciar o mundo de um jeito que é meu. 

 

Minha mãe, mesmo que inconscientemente, sabia disso. Ela teve uma filha que parece saída de um filme do Terence Malick em um mundo do Quentin Tarantino. Ela nunca tentou me fazer mais Tarantino. Ela nunca, nem por um momento, destruiu minha criatividade. Ela me deixou ser encantada em um mundo desencantado, e acho que hoje em dia, quando eu acordo falando de frequências e de dimensões e de como o tempo não existe ela acaba pensando que talvez ela tenha pesado a mão na dose de magia. Não mãe, você não pesou. Você me deu exatamente o que eu precisava. E eu serei sempre grata por isso. A verdade é que essas sensibilidades e a ausência de contornos nítidos são a base das coisas que eu mais admiro em mim mesma. Eu herdei muito dos meus pais. E eu agradeço. 

 

 

12.05.2019
Morgana Lino